Considerações sobre o Sentido do Trabalho na “Sociedade da Gestão”

28 de março, 2022 - Trabalho

O mundo está em constante evolução e o trabalho sempre fez parte da vida do homem. Podemos considerar, segundo Leontiev (1978), que o processo de hominização é marcado pela atividade do homem em relação a natureza, onde a partir da fabricação de instrumentos iniciam- se as primeiras formas de trabalho e socialização.

Por Anna Elisa Haj Mussi*

O mundo está em constante evolução e o trabalho sempre fez parte da vida do homem. Podemos considerar, segundo Leontiev (1978), que o processo de hominização é marcado pela atividade do homem em relação a natureza, onde a partir da fabricação de instrumentos iniciam- se as primeiras formas de trabalho e socialização. Atribui-se a evolução do homem ao fato de que possui capacidade para uma atividade criadora e produtiva o que o diferencia dos animais. O homem não se adaptou a natureza, mas a modificou em função do desenvolvimento de suas necessidades. A esta atividade tipicamente humana, atribui-se o nome trabalho – atividade natural que o caracteriza como ser social.

Reflexão sobre o Trabalho

Segundo Carone (2003), o trabalho tem por finalidade produzir um mundo para os homens transformando a natureza. A autora cita Aristóteles, para quem o trabalho tem duas fases e quatro causas ocorrendo simultaneamente. Uma fase subjetiva que se inicia na ideia, chamada de noética e a segunda que é o produto final desta ideia, chamada de poiética. As quatro causas em jogo são a final e a formal, que fazem parte da fase noiética e a material e instrumental que fazem parte da fase poiética.

No trabalho, existe, pois, uma intenção e um propósito para que depois venha a execução do produto final. Trabalho seria então a união entre ambas. Onde houver separação, não há trabalho. Se tomarmos como exemplo o escravo, poderíamos considerar, por esta ótica, que não existe um trabalho, já que o escravo é mero instrumento comandado por uma finalidade externa a ele, conforme pondera Carone (2003).

Acrescenta-se de acordo com a visão do trabalho alienado de Marx trazida por Carone (2003), “a  finalidade da ação não é subjetiva, autônoma, livre, mas heterônoma, não livre”. O trabalho teria então como objetivo desenvolver a natureza interna do homem por meio da interação e transformação da natureza externa. Quando esta potencialidade interna não vem à tona, o trabalho vai perdendo o sentido para o homem e se esvaziando da possibilidade de associação a algo prazeroso.

No decorrer da relação do homem com o trabalho, a atividade criadora e produtiva foi deixando de ser uma referência essencial desta interação e outros sentidos foram atribuídos. Historicamente, o trabalho, recebeu vários sentidos, dependendo da sociedade e da época em que estava inserido.

Segundo Ferraz (1998), o trabalho na visão grega, era considerado algo de menor importância, ao qual indivíduos de maior valor não deveriam submeter-se. Para os hebreus uma “ labuta penosa” ao qual os homens estariam condenados em função de sua condição de pecador. Para o cristianismo, o trabalho evitava o ócio e portanto ajudava a livrar dos maus pensamentos. Lutero introduz a ideia de trabalho como forma de servir a Deus, um caminho para a salvação. E na visão de Adam Smith o trabalho tornou-se o princípio básico do sistema econômico liberal, sendo concebido como regulador da economia.

Ainda a partir das ideias de Ferraz (1998), no modelo de gestão em vigor, o trabalho ocupou uma categoria utilitarista, não mais pela sua essência, mas sim associado a uma ética do cumprimento do dever. O trabalho como atividade inerente a condição humana, enquanto oportunidade de realização de um potencial criativo, acaba sendo desvirtuado no decorrer da história.

A perspectiva do trabalho nas revoluções industriais

Com o advento da Agricultura, o homem substitui a busca pelo alimento e a caça pelo cultivo da terra. Segundo Neto (2017), o homem vivia em pequenos grupos, em famílias que trabalhavam juntas, não havia a possibilidade de ascensão social, já que o local onde se nascia, determinava sua classe social. A subsistência advinha do plantio e pastoreio. A terra era a base da economia.

Com a primeira Revolução Industrial, a máquina a vapor deu início a um novo formato nas relações de trabalho, já que surgiram grandes empreendimentos fabris, o homem passa a almejar trabalhar na fábrica. A realidade familiar é transformada pela chegada da fábrica, já que ocorre uma separação entre trabalho e família. Até então os ofícios eram realizados na casa da família, agora o chefe não mais coincide com o familiar, o poder de comando passa ao empregador.

A segunda revolução industrial caracteriza-se pela utilização de novas formas de energia, os recursos naturais como carvão e petróleo são utilizados para aperfeiçoamento da atividade fabril e as máquinas se tornam mais eficazes. Durante os séculos XIX e XX a produção em massa era a tônica. Sennet (1999), destaca que a partir das ideias de Taylor, com seus estudos de tempo e movimento – que cronometravam as rotinas da fábrica – a busca por maior produtividade ganhou força. Não era esperado que os trabalhadores encontrassem sentido nos processos, quanto menos fossem distraídos pela busca de compreensão do todo, mais produtivos seriam.

Ford aperfeiçoa o modelo de Taylor, onde o foco era o controle do trabalhador por meio de tarefas repetitivas e tempos cronometrados. Neste modelo o trabalhador já não conhece o projeto, não participa do produto final, apenas repete, de forma mecânica uma atividade vazia de sentido. Nesta fase, as máquinas ocupam um papel central na produção e o aspecto humano, com seu potencial transformador e criativo, perde definitivamente seu protagonismo.

Com a Terceira revolução industrial, a partir da década de 1960, há uma democratização da tecnologia, maior robotização nas fábricas e o modelo Fordista perde força para o modelo Toyotista, que privilegia a atividade multifuncional e o trabalho polivalente. Investe-se em qualificação do trabalhador, ele torna-se mais participativo, visando a qualidade e produtividade. Com este modelo há diminuição das hierarquias e neste padrão mais colaborativo há uma mudança nas relações de trabalho. O trabalho torna-se  mais “humano” e as práticas gerenciais são valorizadas. Psicólogos industriais como Elton Mayo, demostram para as empresas que a atenção às relações humanas favorecem a produção de sentido para o trabalho e portanto, melhoraram a produtividade.

Sociedade da Gestão                                                                                                                     

Ocorre que neste cenário de revoluções industriais, segundo Gaulejac (2007), estavam lançadas as bases para uma sociedade da gestão. Onde a empresa era o centro do universo econômico, social e cultural. Os indivíduos estabelecem uma dependência econômica, psíquica e social já que a empresa passa a ser lugar de pertencimento e convívio. A ética do trabalho se converte na origem do homem econômico de Max Weber. O trabalho deixa de ter um fim em si próprio e se transforma em um meio de aquisição de mercadorias.

Com as mudanças introduzidas, o trabalho duro e rotineiro, que antes seria recompensado com um futuro promissor, é convertido para uma temática mais flexível nas organizações, que introduz novas estruturas de poder e controle, não mais atreladas ao trabalho físico e instrumental, mas a um novo modelo onde o risco e a flexibilidade tornam o trabalho ainda mais ilegível. O sentido e a experiência pessoal se perdem no distanciamento imposto pela falta do vínculo emocional, do exercício criativo e da narrativa que sustentava a vida profissional. (SENNET, 1999; GAULEJAC, 2007; PAGÉS,1990)

A suposta liberdade gera desorganização dos tempos. Surge uma nova ética que por um lado incentiva o individualismo, competição e diferenciação por desempenho; e por outro, insiste no trabalho em equipe. A figura da autoridade perde força, cabe ao indivíduo reconhecer seu desempenho, há auto responsabilidade pelo sucesso e pelo fracasso. O trabalho não aparece mais como possibilidade de ativação do humano, mas como medida da competência e identidade do homem. O sucesso é medido pelas conquistas externas, bens materiais e posição social galgados com o trabalho.(SENNET, 1999; GAULEJAC, 2007)

A responsabilização pelos resultados passa a ser atrelada a competência dos indivíduos, a atualização deve ser constante, o fracasso é lido apenas como atribuição pessoal. Sennet (1999), pondera a partir das ideias de Katherine Newman: “Ser um executivo em mobilidade descendente é primeiro descobrir que não se é uma pessoa tão boa quanto se pensava, e depois acabar não sabendo quem ou o que se é.”(SENNET,1999, p.158)

Como se percebe, o homem a esta altura, conforme Lima (2007), vivencia a repercussão que o trabalho promove nos processo de construção da identidade. “As evidências são numerosas e revelam, de forma contundente, a permanência do trabalho como categoria central e, portanto, essencial na compreensão dos processos de construção identitária do homem contemporâneo.”(LIMA,2007, n.p.). Segundo a autora, pesquisas revelam que a perda ou afastamento do trabalho levam a rupturas significativas na identidade do sujeito, que geram baixa autoestima, culpa, instabilidade emocional, insegurança e incompetência.

Assim, a rotina que outrora foi vista como forma de aprendizagem, a partir das ideias de Diderot em Sennet (1999), como possibilidade do homem assumir o controle e se acalmar pelo domínio de se seu trabalho, já não é valorizada. A flexibilidade é valorizada, e o homem deve ter a capacidade de se adaptar às circunstâncias. Nesse contexto, as organizações passam a atribuir papel destacado para a área de gestão de pessoas, da qual se espera a inserção de novos métodos buscando a adaptação do indivíduo a esse novo cenário.

O papel da área de gestão de pessoas

O setor de Recursos Humanos (RH), historicamente assumiu diversos papéis, desde o departamento pessoal, mais voltado as questões legais, até o momento atual da moderna gestão de pessoas, que pretende estar alinhada a estratégia da organização. Porém, vale questionar se mediante as transformações que o trabalho vem passando, houve evolução neste papel ou se o RH vem apenas se adaptando às exigências da organização, agindo a serviço do controle do trabalho e da adaptação do indivíduo, visando exclusivamente o aumento da produtividade.

A RH deve ser o principal representante e incentivador do trabalho como fonte de prazer e realização, mas pode estar distante deste objetivo, se apenas traduzir as atividades humanas em indicadores de desempenho, já que as ciências da gestão: “constroem uma representação do humano como recurso a serviço da empresa, contribuindo, assim, para sua instrumentação”(GAULEJAC, 2007, p.37).

É importante considerar o valor de uma política de gestão, que não se baseie unicamente em instrumentalizar e mensurar resultados, que conforme Gaulejac (2007), favoreça a reflexão, o pensamento crítico e confie na capacidade do ser humano de planejar, decidir e agir. “ O sujeito reflexivo sabe desenvolver suas capacidades criativas em um meio ambiente em que a confiança é mais importante que o controle, a iniciativa mais que a medida de resultados, a sublimação, mais que a onipotência.”(GAULEJAC, 2007, p.290)

Considerações Finais

É verdade que o trabalho oferece múltiplos sentidos e está associado a fatores culturais e individuais quando analisados seus impactos na vida das pessoas. Porém, o trabalho continua a ocupar um lugar central e essencial na construção da identidade humana. Ocupa este papel, pela sua essência de ser um vetor que indica a capacidade humana de colocar intencionalidade e inventividade às suas ações.

Segundo Ferraz (1997), para a psicanálise, o trabalho é fonte de sublimação – entendida como movimento de modificação da energia pulsional que, para atender às necessidades sociais, se desloca para outros objetos e fins socialmente aceitos, inibindo sua finalidade. Esta sublimação pode ser direcionada ao trabalho, se considerarmos o papel que o trabalho ocupa em praticamente todas as culturas. Parece apropriado que o sujeito encontre nesta atividade, uma oportunidade de satisfação.

A atividade profissional constitui fonte de satisfação especial se for livremente escolhida, isto é se por meio da sublimação, tornar possível o uso de inclinações existentes, de impulsos, instintivos persistentes ou constitucionalmente reforçados. No entanto, como caminho para a felicidade, o trabalho não é altamente prezado pelos homens.(FREUD, 1930, p.88).

Ocorre que com modelos gerenciais que submetem o homem a critérios de utilidade, as distorções na relação do homem com o trabalho se cristalizam. Os canais que possibilitariam esta sublimação, encontram-se muitas vezes bloqueados. O homem acaba por não utilizar o potencial que o trabalho oferece enquanto meio privilegiado de realização humana, tanto por questões individuais, quanto por estas configurações estabelecidas no ambiente.

Neste contexto, cabe questionar o papel e a responsabilidade social das empresas na adoção de novas formas de trabalho, que promovam espaços de diálogo, criação, construção coletiva, e sobretudo que passem a acolher o ser humano, possibilitando o surgimento de um Sujeito, que ao se conectar e na relação com o outro, constitui sua própria subjetividade:

Quando a atividade faz sentido para o sujeito, sua adesão está adquirida. Ele pode então mobilizar todas as suas capacidades reflexivas e criativas. Não há nenhuma necessidade de grandes discursos quando há uma coerência entre os objetivos perseguidos e os meios postos em prática. Espera-se da gestão esta coerência que cruelmente faz falta nas empresas gerencialistas entre o vivido e o conceito, entre o prescrito e o realizável, entre a cifra e o que ela mede. (GAULEJAC, 2007, p. 297).

Com o advento da Quarta Revolução Industrial, novas tecnologias e inteligência artificial mudarão drasticamente a natureza do trabalho, profissões serão extintas, novas surgirão. Neste cenário, as empresas já não pertencem exclusivamente aos acionistas, mas fazem parte da sociedade, em um modelo de transparência e prestação de contas à sociedade. Os stakeholders estão cada vez mais exigentes e cobram posturas para além do lucro. Políticas que desconsideram as dimensões do meio ambiente e os aspectos sociais já não são mais aceitas.

E é neste cenário onde o modelo gerencialista deve perder espaço que cabe avaliarmos as transformações necessárias à área de gestão de pessoas. Afinal, a adoção de uma liderança consciente e socialmente responsável pode ser o primeiro passo para que o trabalho possa fazer sentido e ocupe um lugar sadio na vida do sujeito.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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*Psicóloga, Coach e Consultora para Desenvolvimento de Lideranças e Equipes. Diretora da Mastery Coaching e Desenvolvimento.